segunda-feira, 10 de março de 2014

A Sociedade das Bolhas

Novamente adentrava o restaurante passando com certa dificuldade pela estreita porta de vidro. Sempre se perguntara se a porta é que era pequena ou se sua bolha é que era larga demais.

A fila atravessa o grande salão como uma grande serpente faminta. De seus lugares, assegurados pela ordem de chegada, olhos atentos para todos os lados. Onde quer que não houvesse um objeto sobre a mesa que demarcasse o território, certamente ali seria o palco de acirrada disputa. Uma disputa veemente pelo direito de sozinho sentar-se. De jamais dividir a mesa com estranhos. De não conhecer pessoas novas. De jamais sair da bolha.

O senhor logo à sua frente, nervoso desde que pusera os pés no salão, observava com olhos de lince a todas as fileiras, todas as ilhas, todas as mesas. Finalmente encontrara seu precioso refúgio de madeira, onde poderia desfrutar de sua comida sozinho, isolado e seguro. Sem intervenções, sem conversas chatas e sem pessoas novas. Exceto é claro, pelas outras 20 pessoas das bolhas, nas mesas ao redor. Rápido feito flecha, correu a largar seu objeto de restrição para demarcar o seu território, feito cão que urina em poste.

Ainda não adaptado àquele sistema de divisão social e de luta pelo melhor refúgio possível, ele decide que não colocará nenhum objeto sobre mesa alguma. Afinal de contas sua bolha tem furos e vez por outra, em caráter de exceção, ele se permite algum contato com estranhos de outras bolhas defeituosas.

Como já esperava , ao completar o ciclo do buffet, já com prato e comanda em mãos, só lhe faltava a mesa. Sem precisar de muitos passos, percebeu que haviam mais celulares, bolsas, chaveiros, carteiras de identidade e capacetes do que pessoas sentadas. Visão estranha era aquela. Estranha apenas a ele, portador de uma bolha deformada.

Do interior das arredomas solitárias partiam os mais variados tipos de olhares. Alguns de escárnio, outros de desprezo, e muitos de superioridade, pois afinal eles haviam vencido. Conquistaram  previamente sua ilha própria, onde poderiam comer isolados, em seus monólitos vazios. Grande tolo desorganizado, imperfeito e esquisito é o que ele era.

Lembrara-se do dia em que uma senhora pediu licença e dividiu a mesa com ele. Trocaram palavras frugais e breves experiências. Até hoje se pergunta se isso ocorreria, não fosse pela deformidade de sua bolha somada ao desgaste da bolha da velha senhora. Certamente não tinha muito a perder contaminando-se com habitantes de monólitos desconhecidos.

Pagou a comanda e saiu do restaurante tão silencioso e introspectivo quanto entrara. Com a certeza de não ter invadido o espaço de ninguém, e com sua bolha intocada. Do outro lado da rua, o cuidador de carros mendigava alguns trocados, mas era completamente ignorado. Nem bolha ele tinha, ora que ultraje.

Na avenida transversal, a florista derrubara uma orquídea e ao abaixar-se para juntá-la, um pivete sorrateiro afanou-lhe a bolsa. Não entendia como atrevera-se a invadir sua bolha. Não entendia porque alguns insistiam em tentar ter o que não tinham. Apenas alguns merecem a bolha que têm. Apenas alguns têm a bolha que merecem. Quem não tem bolha não nasceu para ter. Assim sempre foi e assim sempre será. 

Limpou o vestido e se levantou com um profundo pesar nos olhos. Não pela sua bolsa, que nada tinha de valor a não ser o velho batom, da mesma cor que usara pelos últimos 25 anos e uma escova de cabelos com menos dentes do que ela. Lamentava pela liberdade de correr por aí sem bolha que o pivete tinha. Isso sim, era uma absurdo.

Black and white art Dream imagination surrealism Tommy Ingberg man in a bubble





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