sábado, 4 de outubro de 2014

O Açougue da Existência

 A enferrujada faca de corte era sua velha conhecida. A cada novo corte, um alívio. A cada alívio, um pesar.

A rotina de cortar seus membros defeituosos havia começado não fazia muito. Da última vez cortara sua mão direita. Gangrena era o motivo. Ele morria aos poucos, e a gangrena indicava os pontos de corte.

Desolado, percebeu que se cortar já não bastava. A cada nova poda, dois novos membros cresciam. Por isso se tornara um um viciado em mutilação. Nem um termo para isso definir  havia sido inventado. Sofrimento talvez, insanidade ou simplesmente, solidão.

A verdade é que ele se acostumara a cortar seus membros. Cortou as orelhas, para não mais ouvir. Arrancou os olhos, para não mais ver. Cortou seus pés, pois assim só tropeçaria nas palavras.

O resultado catastrófico foi sua inevitável mutação. Três braços direitos, duas pernas esquerdas, dois olhos direitos e cinco esquerdos. Não conseguia se eximir de nada do que lhe incomodava.

Lentamente foi se acostumando com a  dor. A dor de existir. A dor de viver sem que assim quisesse. A dor de ver a vida se multiplicar a cada gesto de não-vida que cometia.

Sorte dele ter sua velha faca enferrujada, pois só assim podia alimentar a ideia de que poderia controlar o poder da vida. De remover em belos cortes, os pedaços da realidade que lhe era imposta.

Art by Edouard Manet


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Um Quarto

Outro dia acordei e descobri que tinha feito 25. Me olhei no espelho e ao invés de uma ruga, duas espinhas eclodiam no meu vértice nasal. Sinal dos tempos ou falta de namorada? Tanto faz. Fato é que eu completei meu primeiro quarto de século. Um mesmo quarto por toda a vida. Nenhum quarteto de cordas. Nem um quarto de esperança.


Certa vez me disseram que depois dos 25 anos já não poderíamos mais responsabilizar nossos pais por aquilo que somos, ou nos tornamos. E agora? No desamparo de mim mesmo. De quem é a culpa?


No fim das contas não há culpa nem culpados. Sair do útero é o primeiro processo traumático ao qual somos submetidos. Sem convite, sem permissão, sem “com licença” nem “hoje não”. Desamparados desde o princípio. Livres, se assim decidirmos.


No bolso esquerdo do casaco, uma folha de papel amassada, com a frase de Spinoza, que pela manhã eu anotara. Na mochila, o volume  de “A Gaia Ciência”, que de aniversário eu ganhara. Na cabeça, uma frase e uma certeza — “Não há esperança sem medo, nem medo sem esperança.”


A incompreensão sobre um mundo onde drogas naturais são proibidas, enquanto toneladas de antidepressivos e ansiolíticos são receitados livremente nos consultórios. Para o lucro de quem vende. Para a falência de quem depende. Para a contenção da geração Y. Um lugar onde pessoas correm para assistir e aplaudir duas pessoas do mesmo sexo brigando como animais, mas viram o rosto e se sentem ultrajadas quando as mesmas se beijam. Onde pessoas de sexos opostos não podem ser amigos. Um lugar onde a gula é um pecado capital, exceto a gula pelo capital.

Um quarto de século de muito aprendizado e algumas conquistas. Desde muito cedo incumbido de mais responsabilidades do que podia suportar. Sempre suportando mais do que sabia poder. Desaprendendo a duvidar, sigo o caminho, hoje mais leve. Desacredito no fracasso em rejeição ao medo e a dor, pois sei que o medo é o que limita a vida e a dor é a certeza de estar vivo. Viver é confrontar. Conformar é morrer.



sábado, 15 de março de 2014

Dos Frankensteins que nos habitam


Assistindo ao Frankenstein de Mary Shelley novamente, pude observar o quanto do Dr. Victor Frankenstein e de sua criatura há em mim e na sociedade em que vivemos. Frequentemente brincamos de Deus e tentamos ir além do que nos é permitido, do que nos é possível, além do que é ético e coerente.

Não aceitar nossa efêmera condição humana em geral apresenta-se como nosso maior gene Victoriano latente e inegável. Por vezes nos prendemos a desejos obsessivos e inatingíveis, de forma consciente, porém nos empenhamos em sua busca porque precisamos de garantias de que nossa existência não será esquecida. De que nossos feitos serão lembrados e de que de alguma forma seremos eternos. 

Todos precisamos de algo que nos impulsione e nos motive a seguir em frente. Mas como saber qual é o limite entre o desejo e a obsessão?
Qual o limite entre a coragem e a insanidade?

A perda da mãe foi o fator que impulsionou a busca incontrolável do Dr. Frankenstein pelo controle sobre a vida. O descontentamento é o que nos move na maioria das vezes. Não fosse o descontentamento e determinação de Thomas Edison, não teríamos a lâmpada elétrica. Não fosse o descontentamento e persistência de Albert Sabin não haveria já em 1961 uma vacina contra a poliomielite, mesmo após a comprovação da ineficácia de sua primeira versão disponibilizada em 1955. 

O filme nos propõe a narrativa de uma busca pelo fim da morte, mas sem a certeza exata de que o fim da morte seria de fato um início de uma uma nova vida. Sem medir as possíveis conseqüências dos seus atos e rompendo com a ética da sua profissão, Victor traz à vida a criatura que viera a ser tachada de monstro pela sociedade e por ele próprio. Arrependido e assustado pelo que fizera, sua reação não fora outra senão expulsar sua criatura, seu monstro, e por conseguinte, seu "filho".


Julgado pela sua aparência repulsiva e seu comportamento incomum, é perseguido, endemonizado e por fim procura asilo e esconderijo onde não mais possa ser visto, nem condenado. Em um chiqueiro, juntos aos porcos, é onde se aloja, enquanto Victor, acreditando que sua criação não mais o incomodará e sua atitude irresponsável ficara nas brumas do passado, segue sua vida naturalmente, de volta à cidade de Genebra onde a peste não pudesse alcançá-lo.

Até aqui podemos ver um perfeito reflexo do tratamento que a nossa sociedade dá àqueles que à ela não se ajustam. Que não se enquadram nos seus padrões pré-estabelecidos pelas autarquias da mídia, pelos celeiros da moda e pelos preceitos da mentalidade conservadora. Victor abandona sua criação ao descobrir que a mesma não corresponde às suas expectativas. Bem como muitos pais abandonam e rejeitam seus filhos "imperfeitos". Os largam ao mundo para que sejam apedrejados como abominações, enquanto seus algozes apresentam deformidades empíricas ocultadas pelos espelhos egocêntricos implantados em suas mentes pelo conceito falho da normalidade existencial.

A criatura só necessita daquilo de que toda a humanidade necessita: Amor e aceitação. Ainda que entre os porcos, ainda que reconhecido como "Anjo da Floresta", se sente aceito, mesmo que não o vejam. Se sente amado. Até que em seu ímpeto primitivo resolve vir à luz e expõem-se para proteger sua "quase família". O único que não o rejeita é o velho homem cego, que nada pode fazer para impedir que o seu filho o expulse como uma aberração invasora.

E a dor da rejeição desperta um dos instintos mais primitivos do homem. A vingança. Já capaz de compreender aquilo que é, e principalmente aquilo o que não é, parte em busca do Dr. Victor Frankenstein. Em busca de respostas, de compreensão e sumariamente, por vingança, ele parte rumo à Genebra.


Tomado pelo desejo de vingança e sua sede por respostas, seu primeiro encontro no bosque é com o irmão mais novo de Victor, William, ao qual assassina e arquiteta um plano para incriminar Justine, que sofria por um amor não correspondido por Dr. Frankenstein. Justine é perseguida e condenada à morte.

Novamente um retrato da sociedade que julga, apedreja e enforca sem julgamento. Apenas o pré-julgamento, precipitado e leviano. Tão diferente dos nossos dias atuais, não?

A criatura, que 
por escolha de Mary Shelley, nessa obra não recebe o nome de Frankenstein como em outros filmes, se apresenta ao seu criador que acreditava que o mesmo estivesse morto. Victor entende que é hora de prestar contas. Em seu diálogo, a reivindicação por uma companheira, que não o rejeitasse para que então pudesse se isolar da humanidade por definitivo é apresentada ao Doutor, que impulsivamente aceita o acordo.

Victor entende o mal que causou àquele ser que o questionara sobre a existência de sua alma, e decide atender ao seu pedido, já que o condenara a uma vida miserável. No entanto, mediante à pressão de Elizabeth para que o seu casamento não fosse adiado, acaba sucumbindo aos apelos de sua noiva e realiza o matrimônio, deixa seu projeto de lado, quebrando então, sua promessa à criatura. 

Cego por sua fúria, a criatura destrói, como havia prometido, a noite de núpcias de Victor e arranca o coração de Elizabeth. Desesperado Victor toma o corpo de sua amada já sem vida   o leva para o laboratório onde dá início ao processo que trouxera o ser abominável à vida. Como contribuição, a criatura viola o túmulo de Justine para que seu corpo seja utilizado na nova transmutação. 

Uma nova ação desesperada movida por razões individualistas é o que Dr. Frankenstein promove. Recriando sua amada para saciar novamente o seu medo de perder pela segunda vez o que lhe restava da sua memória materna, uma vez que seu relacionamento com Elizabeth, era em termos, incestuoso. 

Após desperta, uma disputa pela receptividade da nova criatura, metade Justine, metade Elizabeth, culmina entre criador e criatura. Em um ato de repúdio, a nova criatura ao perceber no que fora transformada, ateia fogo ao próprio corpo e incinera toda a casa.


Victor dedica sua vida à busca por vingança, e passa a perseguir sua criatura primogênita. Eis que então o filme retorna à cena inicial, à qual não fiz questão de narrar, mas no navio preso ao Iceberg, o Dr. Frankenstein acaba por morrer de exaustão. 

Quando o gelo começa a partir-se e a pira fúnebre ainda não acesa se desprende do navio, a mais bela declaração do filme, quando a criatura diz que ali, ele abandona a sua humanidade e em unidade com seu, agora assim reconhecido por ele, pai, submerge no nevoeiro em uma única jangada de gelo em chamas para imensidão do infinito.


A cena final envolve perdão e redenção pelos erros cometidos ao longo daquelas duas existências tão diferentes e tão abaladas pelo mesmo sentimento, pelo mesmo desejo incontrolável de controlar a vida, pelo qual o Dr. Frankenstein fora tomado e que acabou por destruir sua família e tudo o que ele amava. O perdão e as lágrimas da criatura demonstraram o quanto ele era humano, e como tudo poderia ter sido diferente com um pouco mais de compreensão e aceitação, principalmente por parte do seu genitor.

Assim como a criatura se sentia em relação a Victor, por vezes nos sentimos em relação a Deus (se é que existe algum) ou em relação aos nossos pais, que nos dão a vida, para que sejamos testados e mal tratados o tempo todo e ainda assim tenhamos a obrigação de sermos bons em tempo integral. Diferenças que não escolhemos, mas que nos marcam e nos inferiorizam em relação aos adaptados e aceitos socialmente, nos estigmatizam e podem despertar aquilo que  de pior há em cada um de nós. É preciso ser forte para não sucumbir e generoso para aprender a perdoar. Creio que esta seja a principal reflexão que a obra nos propõe. 

Deixarei aqui o link para download caso alguém ainda não tenha assistido a este clássico de 1994 com Kenneth Branagh, Robert de Niro e Helena Bonham Carter.



segunda-feira, 10 de março de 2014

A Sociedade das Bolhas

Novamente adentrava o restaurante passando com certa dificuldade pela estreita porta de vidro. Sempre se perguntara se a porta é que era pequena ou se sua bolha é que era larga demais.

A fila atravessa o grande salão como uma grande serpente faminta. De seus lugares, assegurados pela ordem de chegada, olhos atentos para todos os lados. Onde quer que não houvesse um objeto sobre a mesa que demarcasse o território, certamente ali seria o palco de acirrada disputa. Uma disputa veemente pelo direito de sozinho sentar-se. De jamais dividir a mesa com estranhos. De não conhecer pessoas novas. De jamais sair da bolha.

O senhor logo à sua frente, nervoso desde que pusera os pés no salão, observava com olhos de lince a todas as fileiras, todas as ilhas, todas as mesas. Finalmente encontrara seu precioso refúgio de madeira, onde poderia desfrutar de sua comida sozinho, isolado e seguro. Sem intervenções, sem conversas chatas e sem pessoas novas. Exceto é claro, pelas outras 20 pessoas das bolhas, nas mesas ao redor. Rápido feito flecha, correu a largar seu objeto de restrição para demarcar o seu território, feito cão que urina em poste.

Ainda não adaptado àquele sistema de divisão social e de luta pelo melhor refúgio possível, ele decide que não colocará nenhum objeto sobre mesa alguma. Afinal de contas sua bolha tem furos e vez por outra, em caráter de exceção, ele se permite algum contato com estranhos de outras bolhas defeituosas.

Como já esperava , ao completar o ciclo do buffet, já com prato e comanda em mãos, só lhe faltava a mesa. Sem precisar de muitos passos, percebeu que haviam mais celulares, bolsas, chaveiros, carteiras de identidade e capacetes do que pessoas sentadas. Visão estranha era aquela. Estranha apenas a ele, portador de uma bolha deformada.

Do interior das arredomas solitárias partiam os mais variados tipos de olhares. Alguns de escárnio, outros de desprezo, e muitos de superioridade, pois afinal eles haviam vencido. Conquistaram  previamente sua ilha própria, onde poderiam comer isolados, em seus monólitos vazios. Grande tolo desorganizado, imperfeito e esquisito é o que ele era.

Lembrara-se do dia em que uma senhora pediu licença e dividiu a mesa com ele. Trocaram palavras frugais e breves experiências. Até hoje se pergunta se isso ocorreria, não fosse pela deformidade de sua bolha somada ao desgaste da bolha da velha senhora. Certamente não tinha muito a perder contaminando-se com habitantes de monólitos desconhecidos.

Pagou a comanda e saiu do restaurante tão silencioso e introspectivo quanto entrara. Com a certeza de não ter invadido o espaço de ninguém, e com sua bolha intocada. Do outro lado da rua, o cuidador de carros mendigava alguns trocados, mas era completamente ignorado. Nem bolha ele tinha, ora que ultraje.

Na avenida transversal, a florista derrubara uma orquídea e ao abaixar-se para juntá-la, um pivete sorrateiro afanou-lhe a bolsa. Não entendia como atrevera-se a invadir sua bolha. Não entendia porque alguns insistiam em tentar ter o que não tinham. Apenas alguns merecem a bolha que têm. Apenas alguns têm a bolha que merecem. Quem não tem bolha não nasceu para ter. Assim sempre foi e assim sempre será. 

Limpou o vestido e se levantou com um profundo pesar nos olhos. Não pela sua bolsa, que nada tinha de valor a não ser o velho batom, da mesma cor que usara pelos últimos 25 anos e uma escova de cabelos com menos dentes do que ela. Lamentava pela liberdade de correr por aí sem bolha que o pivete tinha. Isso sim, era uma absurdo.

Black and white art Dream imagination surrealism Tommy Ingberg man in a bubble





sábado, 28 de dezembro de 2013

O Infeliz Natal da Saúde Capilé


No último dia 19, o Hospital Centenário de São Leopoldo inaugurou sua nova recepção e implantou a utilização de um novo sistema de cores para dinamizar o atendimento e oferecer mais conforto aos pacientes.
Com tanto conforto garantido, quem precisaria se preocupar com a disponibilização de mais médicos para dinamizar ainda mais tal atendimento?
Sorte mesmo teve quem não ficou doente neste feriado de Natal. Com uma espera estimada em 5 horas, para ser atendido pela única médica disponível, os pacientes lotaram a nova recepção. Pessoas de todas as idades, com diferentes enfermidades e agora também diferenciadas entre cores — vermelho, amarelo e verde — conforme estipulado na triagem, esperavam confortavelmente pelo atendimento, como quem espera pelo seu presente natalino. Assim foi o Natal do aposentado Amélio Trentin e de dezenas de pessoas que também tiveram a infelicidade de adoecer no feriado.
 Antes dos sintomas, a primeira pergunta que é feita ao doente é sempre a mesma.
—Por que não fostes à Unidade Básica de Atendimento Médico (UBAM)?
A resposta varia de caso a caso. Não tenho como responder por cada paciente que procura o Hospital, mas algumas respostas eu posso afirmar que não correspondem a este questionamento:
Não é porque o Hospital fica mais perto dos bairros. Ele não fica. Não é porque os doentes gostem de gastar gasolina e de se deslocar grandes distâncias sentindo-se mal. Eles não gostam. Não é porque o atendimento nas UBAMs seja bom. Ele não é.
Me arrisco a dizer que se acredita no imaginário popular, que quanto maior a Instituição for, de mais funcionários (no caso, médicos) ela dispõem. Se uma pessoa doente procura o hospital é porque ela acredita que nele será melhor atendida.
Amélio, mora a duas quadras da UBAM do bairro Feitoria, em São Leopoldo. Acordou com febre, dores no corpo e vertigens, mas tentou aguentar, pois antes de se dirigir ao Hospital constatou que o posto próximo de sua casa estava lotado. Com classificação verde, aguardou das 13 até as 17 horas para ser atendido.  Nesse período, viu a chegada de pessoas baleadas, idosos em estado crítico e pessoas desistindo da espera.  Pessoas com tarjas amarelas e vermelhas sendo atendidas juntamente às de tarja verde. Tão democrático quanto comprovador da ineficiência do novo sistema.
No entanto, a decoração da nova sala de espera ficou muito bonita, parabéns para a administração do Hospital que está investindo muito bem os recursos do Município. Pena que seja no lugar errado. Como dito pela esposa de Amélio, Maria do Carmo Trentin, “De que adianta comprar uma saia nova com rendas francesas, enquanto a roupa de baixo continua aos trapos? ”.


Obviamente que o Jornal VS não publicou meu texto na íntegra, mas ao menos foi atrás dos responsáveis para verificar os fatos. Afinal de contas, de que serve o jornalismo senão para isto?
Pena que a resposta não seja tão esclarecedora quanto desoladora.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A nau de um tolo só

Ship of fools. É o que cantava a embriagada voz do Mr. Morrison quando subi a bordo.  Não de um navio. De um ônibus. Com um único tolo. Eu. O corredor vazio. Os bancos também. A cabeça cheia. A humanidade estava desaparecendo, ele dizia. O que diria ele se soubesse que ela continua? Todo dia. Todo o tempo. 

Nos bares, os copos se levantam como troféus ao fim do campeonato. As luzes natalinas reluzindo insistentes por entre as folhas rememoram, é dezembro. O campeonato chega ao fim novamente. E no fim, só o que resta é o que já foi. O que não foi. E o que não será. O saldo de gols não foi dos piores, nem tampouco, o melhor que poderia ser. Muitas bolas-fora. Muitas faltas. Quase expulsões. E algumas marcas. Muitas delas, na verdade. Mas uma vida sem marcas é como uma tela sem tinta. Um violão sem cordas.


No bolso, nenhum centavo. Na memória, valiosas lembranças. Enquanto isso, a viagem segue. As últimas páginas de outro livro. Uma pausa no trecho que diz: "Eu não queria aquela vida, queria uma vida diferente". Outra curva. Outra rua vazia e escura. À direita, outro bar, cheio de pessoas celebrando a alegria de não saber. Não saber que não é real. Que amanhã o efeito passa e o vazio retorna.

Desembarcar nunca é tão bom quanto deveria ser. Tão próximo de casa. Tão longe de mim. A mesma rua que já viu o pó, já viu o sangue e já viu de tudo. A mesma rua de ontem, e de anteontem. E de sempre. A essa altura quem me acompanha é Mr. Plant. Incrível como 12 anos não mudaram em nada a sensação de euforia, que hoje eu chamo nostalgia, ao ouvir aquela voz. A mesma que eu sentia ao assistir os trechos de "The Song Remains The Same" na MTV. E tudo acaba. Até a MTV acabou. Chego em casa ao som  de Fool in the rain. Outra canção sobre tolos. Sobre tolos felizes à procura de outra dose. Sem coincidências. Sem destino. Só o acaso. E logo antes do refrão, outra verdade: "Os pensamentos de um tolo são desatentos/ Eu sou um tolo esperando na esquina errada". Mas tudo se desfaz, com a melhor recepção do mundo. De quatro patas, de pé no portão, já me espera. Tamanha alegria que eu nem sei retribuir. Lambidas e mordidas de leve. Muito mais do que eu mereço. Muito mais do que eu espero. Mais uns passos e pronto. Do portão para a cama, e de lá já não importa. Onde quer que a madrugada me leve. Tão leve quanto um tolo pode ser.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Espuma branca





Outra vez os dados rolavam sobre o glauco veludo da mesa de jogos. Outra vez os números não eram favoráveis. Apenas mais uma noite de perdas, regada a rum barato. O ar impregnado com aquela mistura de cigarro com perfume vagabundo só piorava a aparência decadente daquele lugar. Fazer o que? Era o único bingo clandestino que ainda aceitava sua presença, pois de todos os outros já fora expulso. Na maior parte por dar calote, em alguns por se meter em brigas.

Mais uma dose. Outro xis na comanda. O sujeito era insistente. Resolveu tentar uma última fézinha antes de fechar a conta. A saideira. Já tinha perdido mais de 500 reais naquela noite. Mas nessa rodada seria diferente. Seria a rodada derradeira. Definitiva. Iluminada. Pediu à loira escorada no balcão que soprasse os dados. Em sua ébria visão, uma jovem linda dotada de um belo sorriso e um incomparável par de coxas. Geórgia soprou os dados, umedecendo-os com os respingos de baba que transpunham o vão existente no lugar dos seus incisivos superiores, removidos a socos pelo seu companheiro do segundo casamento. 

O resultado foi tão positivo quanto o das 23 rodadas anteriores. Sabia que o melhor sempre ficava para o final. Só não sabia de fato, quando o final chegava. O que sabia é que o seu dinheiro acabara. Suas pálpebras pesaram e se fecharam, como janelas de madeira ao vento.

Ao acordar ouviu o silêncio. Apenas o tilintar dos copos sendo recolhidos e levados para a cozinha. Espuma branca varrendo seus pés e a voz da faxineira ao seu lado:
— O bar já fechou moço, cê tem que ir embora.

Pagou a conta no caixa e tão trôpego quanto criança de colo, saiu porta fora. Sob a cabeça, sua vergonha, sobre a cabeça, o amanhecer. Mais uma terça feira vazia. Dali a algumas horas estaria novamente na repartição pública onde trabalhava, soterrado pelos papéis. Sob o teto do Governo. No reduto da justiça. No fórum, onde todas as leis eram postas em prática. Onde sua vida se esvaía em marasmo. Onde seu talento literário não tinha o menor valor. Onde sua única preocupação era digitar corretamente os relatórios e memorandos que lhe eram reportados.

Enfiou a mão no bolso direito e encontrou o Pocket de Bukowski que comprara naquela tarde. Nunca tinha lido Bukowski porque achava vulgar. Mas de que adiantava tanto recato se não passava de um solteiro alcoólatra, viciado em dados. De qualquer forma decidiu que se vivera até então sem ler aquela porra, não seria agora que haveria de mudar. Jogou o exemplar no bueiro. No bolso esquerdo encontrou a chave do velho apartamento alugado na rua nove e algo bem mais interessante. Um canivete suíço. Contemplou o objeto por alguns instantes e tomou sua decisão. 

Desferiu o primeiro golpe em seu pescoço com toda a força contida nos seus braços ossudos, mas nenhum corte, nenhum filete de sangue brotou. Tentou novamente, e novamente, e novamente. Era tão perdedor e derrotista que nem se matar conseguia. Por fim, acabou tombando bem no meio da calçada, onde ficou até ouvir ao longe o som de uma sirene e pela fresta de seus olhos semicerrados enxergar a estranha dança do par luzes azul e vermelha se aproximando.