sábado, 4 de outubro de 2014

O Açougue da Existência

 A enferrujada faca de corte era sua velha conhecida. A cada novo corte, um alívio. A cada alívio, um pesar.

A rotina de cortar seus membros defeituosos havia começado não fazia muito. Da última vez cortara sua mão direita. Gangrena era o motivo. Ele morria aos poucos, e a gangrena indicava os pontos de corte.

Desolado, percebeu que se cortar já não bastava. A cada nova poda, dois novos membros cresciam. Por isso se tornara um um viciado em mutilação. Nem um termo para isso definir  havia sido inventado. Sofrimento talvez, insanidade ou simplesmente, solidão.

A verdade é que ele se acostumara a cortar seus membros. Cortou as orelhas, para não mais ouvir. Arrancou os olhos, para não mais ver. Cortou seus pés, pois assim só tropeçaria nas palavras.

O resultado catastrófico foi sua inevitável mutação. Três braços direitos, duas pernas esquerdas, dois olhos direitos e cinco esquerdos. Não conseguia se eximir de nada do que lhe incomodava.

Lentamente foi se acostumando com a  dor. A dor de existir. A dor de viver sem que assim quisesse. A dor de ver a vida se multiplicar a cada gesto de não-vida que cometia.

Sorte dele ter sua velha faca enferrujada, pois só assim podia alimentar a ideia de que poderia controlar o poder da vida. De remover em belos cortes, os pedaços da realidade que lhe era imposta.

Art by Edouard Manet


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